20 de abr. de 2012

O menino negro, pobre e descalço voltou a dormir na capa do jornal. Eu não.

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Estou há duas semanas sem dormir. Ou menos pior: estou há duas semanas sem dormir satisfatoriamente. Dá pra contar nos dedos das duas mãos a quantidade de horas que eu consegui fazer valer o que eu tanto faço questão em "Amor de Índio" do Beto Guedes: "Lembra que o sono é sagrado e alimenta de horizontes o azul pintado de viver".

Está difícil dormir. Principalmente, quando leio jornais. Não que as notícias me tirem o sono ou me fazem ter pesadelos; é falta de tempo, mesmo. Trabalho durante a madrugada e tento dormir pela manhã, quando é a hora de ler jornais.
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Depois de tantos métodos frustrados pra pegar no sono, hoje eu resolvi me apegar à imagem de uma criança dormindo na capa do jornal. Uma criança suja, descalça e com frio.

Que imagem é essa!!! Exclamação! Há muito tempo não via uma imagem como essa num jornal . Imagem de criança suja, descalça, enrolada na própria camisa, dormindo na rua - ou em frente a um painel onde se lê "Brasil"  só no tempo que eu dormia 8 horas por dia. Ou melhor: 8 horas por noite.

Há muito tempo, os jornais não sabiam e, por isso, não nos fazia saber que crianças dormem nas ruas e em frente a painéis onde se lê "Brasil". Na 6° maior economia do mundo, sede da Copa e dos Jogos Olímpicos, dos PACs e dos empaques, os jornais não mais expõem essa imagem. Nem informam com a devida objetividade idiota. Não interessa a ninguém. Talvez, a assessor de candidato de oposição.

Por isso, a capa do "Hoje em Dia" tirou meu sono hoje pela manhã. Uma criança dormindo em frente a uma agência do Banco Brasil (informa a legenda da foto) enquanto a manchete e a chamada anunciam matéria sobre a redução das taxas de juros (Selic e Banco do Brasil).

"Que provocação é essa!" Hoje é Dia da criança de rua? Dia da criança que dorme em frente a um painel onde se lê Brasil? Dia da fotografia fora de contexto? Ou seria uma homenagem póstuma ao fotógrafo Naldo Cavalcante?

Não resisti. Liguei no jornal, depto. de Fotografia. O responsável ficou incomodado quando eu perguntei "que provocação é essa"? Surpreso, ele buscou, buscou uma explicação...até arriscou uma palavra bonita: "plasticidade" mas pareceia que ia se perder quando eu justiquei minha pergunta: "Calma, cara! Falei em provocação com a melhor das intenções possíveis". E emendei, pra ajudar: "Só leio o que me provoca". 

A resposta, então, ficou cômoda: "É isso. A intenção é essa provocar." 

Entendi e fiquei aqui me perguntando, sem nenhuma profundidade, nenhum compromisso, só pra tentar pegar no sono: "Será que imagens de crianças negras, descalças, como se estivessem sentindo muito frio, dormindo na rua ou em frente a painéis onde se lê "Brasil" ainda vende jornal no Brasil?" Poxa! No tempo em que eu dormia 8 horas por noite, vendia. Quem sabe, as coisas voltam a ser como antes. As vendas de jornal e meu sono.